confinada naquele quarto apertado ela abre uma janela anônima, um lampejo de contentamento entre as paredes que a esmagam. naquele espaço desprovido de julgamentos ela despeja os seus medos, as tristezas, livra-se do mal; deixa-se perder no emaranhado de idéias que a seduzem e quase consegue escapar dos tentáculos que aprisionam seu espírito.
não há sentimento melhor do que entregar-se a própria sorte, desligando os filtros morais que condicionam seu comportamento cândido e superficial; permitir-se incendiar os sentidos com os estímulos libertinosos que irrompem triufantes do seu âmago ansioso… sim, isso é a felicidade. essa é ela de verdade.
então o desconforto ao presenciar aquela janela, antes aberta, quebrada. partiu-se em algum momento imperceptível, uma conexão com si mesma para sempre perdida. na parede, concreto e nada mais. um minuto de silêncio, a luz se dissipa e toda a esperança que alimentava a sua existência inexpressiva também desaparece.
ela é envolta pelo escuro da incerteza, as perguntas latejando em seu corpo no mesmo ritmo pulsante do coração abalado. ela conhece este lugar, é onde o vazio em seu peito cria as palavras errantes que flutuam em seus pensamentos e perturbam o que resta da sua fraca sanidade.
escrever é transformar esses pensamentos em algo tangível, é sobre melhor escolher as mais inusitadas combinações de palavras para tentar ser diferente ao descrever os mais óbvios sentimentos que acometem a condição humana. não há muita novidade depois de dez mil e sabe-se quantos tantos anos mais de civilização.
antes era a terra e as estrelas; a certa altura surgiram paredes a dividir as pessoas, e janelas a fornecerem um vislumbre discreto do mundo lá fora, ou indiscreto da vida ali dentro. mas nestes tempos modernos, as paredes que dividem são telas planas e as janelas que a incomodam, virtuais.
sinais de uma época em que é fácil esconder-se e deixar os outros no escuro, e difícil sentir-se a vontade com tamanha simplicidade.