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essência

era de lavanda e camomila o perfume que emanava da sua pele naquelas tardes quentes de verão em que lábios calmos e contidos percorriam seu pescoço com beijos tão inocentes quanto ela, a brincar de bem me quer, mal me quer, com as pétalas de margarida. ela guardava os cheiros em sua memória tão bem quanto os jardins de flores que percorria de mãos dadas, com o sorriso ingênuo estampado no rosto. até que ele sussurrou as palavras mágicas em seu ouvido: “eu te amo”, e ela não correspondeu. ele comprou uma passagem de avião com destino a mil quilômetros dali e nunca mais a viu.

era de um forte amadeirado o perfume que a envolvia e quase a sufocava, quando ele se aproximava para corrigir a posição dos seus dedos nas teclas do piano. colocava a mão no seus ombros, arrumava a postura das suas costas, e as notas musicais se perdiam entre as notas de coração, aquelas que eram o centro, a alma, e personalidade daquela essência exótica. seus pensamentos rodopiavam, e ela errava novamente. “você não está olhando a partitura?“, ele disse e ela pôde sentir o hálito suave de menta e hortelã que saia da sua boca com dentes reluzentes. não, não estava olhando a partitura. nunca havia beijado alguém que usasse aparelho antes.

era com passos desajeitados que ele a levava até a esquina de casa, fazendo-a sempre lembrar daquele ditado que a fazia rir: “namoro no portão, o amor é cego mas os vizinhos não…“, e a beijava aos poucos, cada dia um tanto a mais, deixando-a quase que louca pela hora de ir embora, ansiando por aqueles lábios de menta e hortelã. foi ele que a ensinou a apreciar esses pequenos detalhes, a memorizar um cheiro, um gosto, a inspirar profundamente e entregar-se aquelas sensações que lhe provocavam calor. mas eu exagero no romantismo, não durou muito. ele era um ser confuso e atormentado, talvez um aviso do destino para ela tomar cuidado com essas criaturas com um dom para fazer música de nosso coração e então nos deixar apenas com a dor do silêncio. ela nunca mais o viu.

era nessa época que, alfabetizando-se musicalmente, ficou sabendo por aí daquela história sobre o título de smells like teen spirit. dizem que uma amiga de Cobain escreveu com spray “Kurt Smells Like Teen Spirit” na parede dele, e que ele gostou do significativo tom revolucionário da frase: “cheira a espírito adolescente”. na verdade a amiga só queria dizer que ele cheirava ao desodorante Teen Spirit, que a então namorada dele usava. ela achou a história engraçada, um pouco fofa, e a contava sempre que surgia a oportunidade.

era um suave perfume de algodão doce que ela usava quando o conheceu, apesar do figurino rebelde incluir uma camiseta rasgada e um all star estourado pelas andanças por lugar nenhum. ela nunca soube ao certo por quem ele havia se apaixonado naquele dia, se pelo anjo infantil, o demônio juvenil, ou pela contradição desses dois seres habitarem a mesma criatura encantadora. ele primeiro perguntou sobre o seu gosto musical, e só então quis saber o seu nome. ele tocou uma música cujo título era palavra que os lábios dela haviam pronunciado, e ela deixou-se apaixonar por ele também.

era de uma essência pura, o amor intenso que alimentava aqueles dois. não era apenas uma impressão inicial, um sentimento leve a escapar pelos dedos sem mais nem menos. eles eram menos voláteis que isso, as sensações evaporavam devagar, eram sentidas e apreciadas ao máximo antes de desaparecer de mansinho. ela só queria lhe arrancar um suspiro durante um beijo, deu que arrancou suas roupas, arranhou sua pele, tocou seu coração, escreveu em sua alma.

era de uma fragrância adocicada, o rastro do perfume que ela deixava nas roupas usadas dele. por onde passava intoxicava o ar com as notas frescas de mandarina, o estímulo quente da bergamota e a pimenta rosa; a sofisticação da gardênia, do gerânio, o calor doce da baunilha com sândalo. uma essência complexa, par perfeito para a renda, as meias até a coxa e o laço de fita preso no peito dela, aquele espírito adolescente que ainda usava desodorante com cheiro de algodão doce.

era de uma elegância indescritível o aroma suave de rosas que perfumava discretamente as roupas formais que ela usava agora. o tempo passou, o querido perfume antigo acabou, e ela inevitalmente cresceu. tentou encontrar a si mesma naquelas frascos coloridos de diferentes tamanhos e formatos. a “flor do rock’n roll“, vendia o rótulo que discorria sobre a naturalidade e independência do lírio do vale, a beleza atemporal da íris, a rebeldia da flor de laranjeira com a sensualidade da baunilha.

era embalados pelas notas desse novo e cuidadosamente escolhido perfume que ainda que percorreram tantos caminhos e viveram tantas aventuras juntos, até que se perderam um do outro e nunca mais se viram. até restar apenas ela, a encontrá-lo a cada respirar: em um café quente, num chocolate meio-amargo, no gloss de morango, numa taça de vinho, num incenso, num livro antigo, nessa ou naquela peça de roupa, ou em cada lingerie guardada na gaveta.

era de um poder inacreditável as notas de fundo da essência daquele amor. elas são a base, o final do perfume que se fixa na pele e define o cheiro que será lembrado mais tarde. essas notas evaporam lentamente, são o último acorde a ser percebido e são as que permanecem por mais tempo, marcando o corpo com a fragrância que se tornará inesquecível.

era de uma fina ironia, ela não pôde deixar de notar, que a palavra perfume vem do latim per fumum que significa “através da fumaça”. é de nicotina o cheiro no corpo amargurado dela, tentando desesperadamente encobrir a fragrância inebriante que o amor dele deixou.

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